Álgebra Abstracta – Introdução a Teoria de Grupos (Post #5)

Este é o quinto post sobre Álgebra Abstracta – Série em Teoria de Grupos.
No post passado, defini mais duas propriedades muito importantes que vão ter um papel preponderante na definição de um grupo G: a existência de inversa (para todos os elementos no grupo ( \forall g \in G, e a existência de um elemento especial e \in G, que é o resultado da operação binária entre g e a sua inversa g^{-1}.

Acho que estamos em forma para definir (finalmente!) o conceito de grupo matematicamente:

Definição 1: (Definição de Grupo)

Um grupo G é um par de dois objectos: um conjunto S  e uma operação binária \circ (que vamos denotar por enquanto por (G, \circ) ), quando estas quatro propriedades se verificam:

  1. (G1) Completude: \forall g_{1}, g_{2} \in S, \ g_{1} \circ g_{2} \in S
  2. (G2) Associatividade: \forall {g_{1}}, \ {g_{2}}, \ {g_{3}} \in S, ( {g_{1}} \circ \ {g_{2}} ) \circ {g_{3}} = {g_{1}} \circ ( {g_{2}} \circ {g_{3}} )
  3. (G3) Existência de Identidade: \forall g \in S \ , \ g \circ e = e \circ g = g
  4. (G4) Existência de Inversas: \forall g \in S \ \exists g^{-1} \ | g \circ g^{-1} = g^{-1} \circ g = e .

Numa frase informal e curta: um grupo tem duas partes: um conjunto S e uma operação binária \circ de maneira a que o conjunto S seja fechado, quando operado com \circ, associativo, que exista um elemento identidade e e que exista, para todo os elementos, um outro elemento dentro do conjunto que operados com \circ resultem na identidade, chamado de inversa.

E isto é o que um grupo é.

(G1),(G2),(G3),(G4) são chamados os axiomas dos grupos. Um axioma é simplesmente uma proposição que se aceita ser verdadeira. Tudo o que eu fiz foi definir um grupo com quatro regras (arbitrárias). Os matemáticos não fazem nada ao calhas, no entanto. Porque será que escolheram estas propriedades? Provavelmente vais poder ir entendendo à medida que a série vai alargando!

Um exemplo nada intuitivo

Para nos ambientarmos mais com grupos de outros elementos que não números, vamos pensar na seguinte situação: Um quadrado [ABCD] é livre de rodar num plano (um espaço R^{2}) em rotações com um ângulo fixo \theta = 90 \ graus . (4) Vamos mostrar que todas as propriedades (incluindo completude e associatividade), juntando-se à existência de inversa e identidade, vão formar o primeiro objecto que vamos estudar em Álgebra Abstracta: o Grupo.

Vamos então pensar. Será que se eu criar o conjunto de todas as rotações de 90º possíveis neste quadrado [A,B,C,D]  -que eu vou chamar R_{90^{ \circ }} em vez de S – que, quando associado a uma operação binária definida como a, \ b \in R_{90^{ \circ }} a \circ b quer apenas dizer: aplica rotação a e depois aplica a rotação b. Será que esta operação é binária e portanto fechada? Melhor que responder, vamos provar.

Assume que existe um elemento a \in R_{90^{ \circ }} que tem estas características: aplicando a rotação a à ordem (A,B,C,D) então: A \mapsto BB \mapsto CC \mapsto D e D \mapsto A.  Mais concisamente, se quiseres: (A,B,C,D) \mapsto (B,C,D,A) (5)

Rapidamente: vamos verificar que este conjunto tem todas as propriedade que defini:

  1. (G1)  –  R_{90^{ \circ }} é um conjunto fechado sobre a operação de composição de rotações. Podemos pensar caso a caso. Aplicando a a todos os vértices faz rodá-los 90^{\circ}. Aplicando a \circ a (lembra-te, quer dizer “aplica uma rotação de 90º graus ( a ) a uma rotação de 90º graus sobre todos os vértices“. A resposta é intuitiva: isto tem de ser equivalente a rodar 90^{\circ} + 90^{\circ} = 180^{\circ}. De maneira similar a \circ a \circ a vai corresponder a uma rotação de todos os vértices de 90^{\circ} + 90^{\circ} + 90^{\circ} = 270^{\circ}. Podes continuar (podes sempre rodar o quadrado quantas vezes quiseres). Isto diz-te uma coisa simples: \underbrace{a \circ ... \circ a}_{n \ vezes} \in R_{90^{ \circ }}. Será que isto quer dizer que posso aplicar rotações sobre rotações quantas vezes quiser? Sim. Quer isto dizer que vamos ter infinitos elementos? Não! Vamos ver porquê em (G3); o que importa para o primeiro ponto é reparar que “uma rotação seguida de uma rotação tem de resultar numa rotação“.
  2. (G2) – Será que a ordem das rotações importa? Claro que não! Vamos supor que temos 3 elementos em R_{90^{ \circ }}, a, \ b, \ c e vamos assumir que, respectivamente, cada elemento faz rodar A, \ B, \ C graus. Então repara:
    \underbrace{\underbrace{({a} \circ \ {b})}_{roda \ A + B} \circ \underbrace{c}_{roda \ C}}_{roda \ A + B + C} = \underbrace{\underbrace{a}_{roda \ A} \circ \underbrace{ (b \circ c)}_{roda \ B + C}}_{roda \ A + B + C}
  3. (G3) – Em (G1), fomos aplicando \underbrace{a \circ ... \circ a}_{n \ vezes} \in R_{90^{ \circ }} para qualquer n; se aceitares que podemos fazer isto mas que há um número finito de rotações possíveis, então vais ter de aceitar este facto: muitos elementos vão ter de ser essencialmente o mesmo. Lembra-te que só pode haver \frac{360^{\circ}}{90^{\circ}} = 4 elementos neste conjunto de rotações e já definimos como R_{90^{ \circ }} = \{ a, \ a \circ a, \ a \circ a \circ a \}. Não achas que falta alguma coisa? A identidade! Tem de ser a identidade, visto que falta um elemento! Vamos chamá-la e. O que acontece se aplicares uma rotação de 90º quatro vezes? Vejamos: a \circ a \circ a \circ a tem de corresponder a 90^{\circ} + 90^{\circ} + 90^{\circ} + 90^{\circ} = 360^{\circ}. Repara no entanto: rodar 360^{\circ} é igual a rodar 0^{\circ} e portanto não rodar nada. Pensa na definição da identidade! Aplicando-a ao nosso caso, o que quer dizer é simplesmente isto:
    \underbrace{a \circ e}_{roda \ A + 0} = \underbrace{e \circ a}_{roda \ A + 0} = \underbrace{a}_{roda \ A}
  4. (G4) Vamos fazer esta parte mais devagar, vamos apresentar alguma notação.

Não achaste um bocado estranho escrever um dos elementos como a \circ a \circ a? Vamos tentar simplificar:

Definição 2: (Aplicação de uma operação binária no mesmo elemento)

Se g \in (S, \circ) (se g for membro de um grupo), \underbrace{g \circ g \circ ... \circ g}_{n \ vezes} pode ser escrito como g^{n} e obtém-se que:

  1. g^{m} \circ g^{n} = g^{m+n}, para todos os números m, \ n \in Z 
  2. g^{-n} = (g^{-1})^{n} , para todo o número n \in Z
  3. (g^{m})^{n} = g^{mn} m, \ n \in Z
  4. g^{1} = g
  5. g^{0} = e

Se tens contacto com manipulação de expressões, potências, fracções e expoentes, não vais estranhar estes resultados. O que estamos a fazer é algo relacionado a criar as mesmas leis de exponenciação que usas todos os dias em números reais num sistema onde os elementos podem não ser números!

Usando esta definição, posso escrever R_{90^{ \circ }} = \{ e, a, \ a \circ a, \ a \circ a \circ a \} = R_{90^{ \circ }} = \{ e, a, a^{2}, a^{3} \}. Ficou mais simples de se perceber, vais concordar.

Usando o resultado 2. da Definição 2 vai dar-nos as ferramentas para descobrir a inversa de todos os elementos.

Vamos começar com a (rotação de 90º graus no sentido dos ponteiros do relógio). Que possibilidades tenho eu para escolher a inversa de a, a^{-1} ? Vamos tentar caso por caso:

  • Se a^{-1} = e isto quereria dizer que a^{-1} \circ a = e \circ a = a. Absurdo! Sabemos que a representa uma rotação de 90^{\circ} e portanto não pode ser a identidade.
  • Se a^{-1} = a isto quereria dizer que a^{-1} \circ a = a^{-1 +1} (pelo resultado 1) = a^{0} = e pelo resultado 4; mas isto é absurdo, porque a \circ a = a^{2} corresponde a uma rotação de 180^{\circ} e portanto não pode ser a identidade e.
  • Se a^{-1} = a^{2} isto quereria dizer que a^{-1} \circ a = a^{2} \circ a^{1} = a^{3}. Absurdo de novo! Já vimos que a^{3} corresponde a uma rotação de 270^{\circ} e portanto não pode ser a identidade e.
  • Se a^{-1} = a^{3} isto quereria dizer que a^{-1} \circ a = a^{3} \circ a^{1} = a^{4}. Acho que daqui consegues entender que a^{4} = e (rodar quatro vezes 90º graus não altera a configuração do quadrado).

Acabámos de descobrir a^{-1} = a^{3}. Não faz sentido? Se eu rodar 90^{\circ} no sentido horário e rodar mais 270^{\circ}, o quadrado regressaria á sua posição original e seria equivalente a não rodar nadae \circ a = a.

Se aplicares esta lógica aos restantes 3 elementos, vais notar que:

  • A inversa de e tem de ser (e)^{-1} = e. De novo, porque  e \circ e = e
  • A inversa de a^{2} tem de ser (a^{2})^{-1} = a^{2}. De novo, porque  a^{2} \circ a^{2} = a^{4}= e
  • A inversa de a^{3} tem de ser (a^{3})^{-1} = a. De novo, porque  a^{3} \circ a^{1} = a^{4}= e

Ou seja, acabámos de, mais do que descobrir que todos os elementos têm (apenas) uma inversa, calcular que inversa é para cada elemento.

Logo, o  conjunto de rotações R_{90^{ \circ }} = \{ e, a, a^{2}, a^{3} \}, sobre a operação \circ “composição de rotações” faz com que (G1),(G2),(G3),(G4) estejam todas verificadas e cá está: acabei de provar que esta estrutura é um grupo.

No próximo post, vamos tentar entender um pouco mais do que os axiomas nos dizem. Já vi (provei, aliás) que o elemento identidade e tem de ser único no grupo: apenas um pode ter as propriedades que a identidade deve ter. Vamos endereçar uma outra questão: a inversa de um elemento tem de ser única no grupo? A resposta, como hás de poder perceber, tem de ser “sim”.

Isto fica para a próxima.

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(1) Não achaste no mínimo estranho que a inversa da identidade tenha de ser a identidade? Será que é sempre assim? No próximo post vamos provar que e^{-1} = e. (Não é difícil chegares a este resultado pela Definição 2 e os seus 4 resultados).

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